segunda-feira, agosto 22, 2005

A besta e a fera

O corte, apesar de pequeno, era profundo o suficiente para não cicatrizar sozinho...era necessário que se fizesse algo para estancá-lo, mas ele fingia não enxergar a cena. Logo ele, que afirmava sua índole e caráter perante todos, que se auto-proclamava como sensível e humano, fingia não ver o quanto sofria, diante de si, seu mais fiel companheiro de tantos anos...

Outro que viesse fazer o curativo...sequer havia mais o traço piedoso que o permitiria, outrora, fazer uso de sua espada e matar sem dor...por compaixão...com um único e rápido golpe.

Sua vida havia mudado: outros planos, vitórias, glórias. Talvez agora se achasse importante demais para sujar suas mãos com o ferimento que ele mesmo havia causado, por descuido e egoísmo...afinal, a fera ainda lhe tinha sido útil para uma última brincadeira.

Ele já estava enfadado daquele amor tão devotado e incondicional, porém igualmente com preguiça de explicar-se e pedir que a fera fosse embora para sempre. Assim, esqueceu-se de soltar as correntes (fingir que algo não existe é uma maneira infantil de "fazer com que" ela não exista)...

A fera tentou voar mas não conseguiu. Ainda tinha os grilhões atados em seus pés. Só poderia andar em círculos, como sempre fizera, protegendo a propriedade dele, velando pelo seu sono e pela sua paz...e cada tentativa de ir só aumentava sua dor. Sendo assim, ficou...

Gritou por socorro uma ou duas vezes...recebeu água e comida, ironicamente levadas por ele mesmo. Mostrou suas chagas, recebeu um afago...porém logo ele se afastava...num silêncio surdo....

Voltando ao salão, era recebido com pompa e música. Todos à sua volta, querendo saber as novidades da última caçada. Ele exibia, orgulhoso, seus troféus. Apresentava novos planos, cada vez mais audaciosos. Pedia à orquestra para tocar mais alto, com o argumento de animar a festa. Mas o fato é que receava os clamores que pudessem vir lá de fora. Sua imagem jamais poderia sair maculada. Afinal, era tudo o que ele tinha, em verdade...

Desnecessário. A fera não gritaria mais...pois não tinha mais forças, nem esperanças, nem revolta. A fera não tinha mais nada, a não ser o tempo diante de si...que usaria para aguardar seu fim.

sexta-feira, agosto 19, 2005

Lost in translation

Dois estranhos...que se conhecem melhor do que a ninguém mais...numa cidade fria, não pela temperatura, mas por não ser sua própria cidade...

No táxi, alguma música da Ana Carolina toca no rádio, numa dessas rádios de consultório médico, no volume exato das rádios de consultório médico. Não importa. Ele a aconchega junto de si e, no refrão, aperta sua coxa, como se quisesse dizer algo, como se aquela canção expusesse uma dor que ele sempre preferiu esconder...

Na cidade que não é a deles, no carro que não é o deles, uma música que não é a deles...entretanto, tudo é tão familiar! O abraço que se encaixa com perfeição...os mesmos cheiros, a respiração, o tom de voz...poderiam dizer que estão ali pela inércia do que já foi, se o que foi já não tivesse sido há algum bom tempo...velhas piadas...uma delicadeza...um carinho...

Um restaurante nunca visitado, novas histórias nunca contadas...o mesmo beijo de sempre, mesmas mãos se tocando, a mesma Coca-Cola. Dois estranhos que, como sempre, têm tanto tanto tanto a conversar...são os últimos a sair do lugar...

As ruas desertas, sem testemunhas, permitem que sejam quem sempre foram. Sem máscaras, sem sujeição a julgamentos de terceiros...afinal, eles não entenderiam como esses estranhos se conhecem tanto e sentem-se tão bem ali, no meio do nada. Condenariam, apontariam, cobrariam rancor, exigiriam mágoa e afastamento..."o inferno são os outros", Sarte diria...

Mas esses estranhos não conhecem o rancor, a mágoa não supera, e o afastamento não se concretiza...

Vão dormir...é muito tarde na cidade do trabalho...deitam-se como amigos, acordam como amantes...se abraçam...e voltam a dormir. Numa cidade que não é a sua, num quarto que não é o seu, numa cama que não é a sua, se reconhecem...

Nunca, em toda sua vida, estiveram mais em casa.

quarta-feira, agosto 17, 2005

A alma boa de Setzuan - Bertolt Brecht

"Quero estar junto da pessoa que amo.
Não quero saber quanto isto vai me custar.
Não quero saber se isto vai ser bom ou ruim para minha vida.
Não quero saber se esta pessoa me ama ou não.
Tudo que preciso, tudo que quero, é estar perto da pessoa que amo."

segunda-feira, agosto 01, 2005

Entre Caymmi e Bono Vox - parte II

Sinceramente, hei de reconhecer que a via segue um fluxo que independe dos nossos esforços. Digamos que todas as nossas ações sejam responsáveis por um percentual dos resultados, mas por outro lado existe SIM um quantum de situações e suspresas aleatórias, as quais não podemos controlar...e talvez seja justamente essa a graça da vida.

Então fica crocante por fora e macio por dentro...ou ao contrário.....macio por fora e crocante por dentro. Não consigo cessar a torrente de pensamentos que me assola diariamente...não consigo parar de me questionar sobre os porquês alheios... sendo assim, Caymmi direcionará os passos, mas Bono estará sempre na alma...feliz ou infelizmente...

E percebi que ainda acredito nas pessoas. Vivo mais feliz assim! E ainda acredito no amor....e vou acreditar sempre!!!! E essa é uma decisão que independe do que os outros façam....eu decidi - é isso, decidi - que quero acreditar nas pessoas. Perderá quem não for capaz de manter essa luz dentro de si. Brega? Pode ser...porém sincero e de peito aberto!

Essa decisão não me torna Alice, mas não quero e não vou fechar meus julgamentos sem antes ter dados suficientes para minhas conclusões...nem vou alimentar minha produção de fel...todo mundo tem direito à indecisão, todo mundo tem direito à dúvida e ao erro...o que não torna a falta de caráter desculpável nem siginifica que vá passar a mão em cabeça de monstrinho...as decepções continuarão existindo...e o meu perdão inesgotável continuará aqui para tentar entender os propósitos alheios...sem que isso diminua a minha dignidade e o meu amor-próprio.